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BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR DE LOCAÇÃO PODE SER PENHORADO - a nova decisão do STF


O único imóvel (bem de família) de uma pessoa que assume a condição de fiador em contrato de locação pode ser penhorado, em caso de inadimplência do locatário. A decisão foi tomada por maioria de votos pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 08 de fevereiro deste ano, no julgamento do RE 407688-SP, que teve como relator o Min. Cezar Peluso. No recurso julgado, os recorrentes contestavam uma decisão do 2o. Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, que, com base no art. 3a. VII, da Lei 8.009/90, indeferira a liberação de imóvel residencial de fiador, objeto de constrição em processo executivo. O STF entendeu que a penhora de bem de família de fiador não viola o disposto no art. 6o. da CF (com a redação dada pela EC 26/2000) - este dispositivo incluiu o "direito à moradia" dentre os direitos sociais da pessoa humana. Para a Corte Suprema, o "direito à moradia" não deve ser traduzido necessariamente como direito à propriedade mobiliária ou o direito de alguém ser proprietário de um imóvel, ressaltando que a exceção prevista no art. 3o., VII da Lei 8.009/90 facilita o acesso à habitação arrendada, constituindo reforço das garantias contratuais dos locadores, e afastando, por conseguinte, a necessidade de garantias mais onerosas, tais como a fiança bancária. Essa nova decisão afasta dois precedentes anteriores do próprio STF (RE 352940-SP e RE 449657), ambos relatados pelo Ministro Carlos Velloso (já aposentado) e decididos no sentido de impedir a penhora do único imóvel do fiador da locação. Nesses dois recursos anteriores, se havia entendido que o dispositivo da Lei mencionada (3a. VII, da Lei 8.009/90), ao excluir o fiador da proteção contra a penhora de seu imóvel, feriu o princípio constitucional da isonomia.

Para se entender com mais precisão a questão, é interessante um exame mais detido do dispositivo que ensejou a interpretação do STF. A Lei 8.009, de 29 de março de 1990 (também conhecida como "Lei Sarney"), dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, considerado como tal "o imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar". Pelos termos do seu artigo 1o., o imóvel assim considerado "é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei". Como se vê da parte final desse dispositivo, a regra da impenhorabilidade do bem de família não é absoluta, pois a própria norma que a enuncia ressalva a possibilidade de exceções. E as exceções são indicadas logo abaixo, nos incisos do art. 3o. da mesma Lei, onde se encontram as situações de exclusão da impenhorabilidade. Esta não se aplica, por exemplo, em relação a dívidas: contraídas pelo não pagamento de direitos trabalhistas dos "trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias" (inc. I), decorrentes de financiamento destinado à construção ou aquisição do próprio imóvel (inc. II), originárias de pensão alimentícia não paga (inc. III), resultantes de cobrança de impostos devidos em função do próprio imóvel (inc. IV), garantidas por hipoteca sobre o imóvel (inc. V), ou quando o imóvel é adquirido com produto de crime ou deva servir para execução de sentença penal condenatória (inc. VI). Posteriormente, a Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 (que dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos), veio acrescentar mais um inciso (o inc. VII) ao art. 3o. da Lei 8.009/90, criando mais uma exceção à regra da impenhorabilidade, para os casos de "obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação".

A constitucionalidade desse dispositivo (o inc. VII do art. 3o. da Lei 8.009/90, acrescentado pelo art. 82 da Lei 8.245/91) começou a ser questionada a partir da Emenda 26, de 14 de fevereiro de 2000, que incluiu o "direito à moradia" dentre os direitos sociais previstos no art. 6o.da Constituição Federal. Para alguns, a partir daí, a regra que admite a penhorabilidade do bem de família de fiador em contrato de locação não teria sido recepcionada, pois em conflito com o texto da Emenda 26. A redação do art. 6o. da CF, com a redação da EC 26, de 2000, ficou assim: "São direitos sociais, sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". Portanto, a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação, dado que o art. 6º da Constituição Federal (dotado de auto-aplicabilidade) assegura o "direito à moradia", ficaria restabelecida e elidida a aplicação do disposto no art. 3º, VII, da Lei 8.009/90.

Um dos que se aliaram a essa tese foi o Ministro Carlos Velloso, ao decidir a questão no RE 352940-SP. Para o Ministro, o direito à moradia é um direito fundamental de 2a. geração, daí porque o bem de família de um indivíduo não estaria sujeito à penhorabilidade. Para ele, a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, e sujeitando o seu imóvel residencial à penhora, "feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais". A decisão que proferiu ao dar provimento ao recurso veio encimada da seguinte ementa:



"CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora "por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação": sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido".



O mesmo entendimento ficou expresso no julgamento do RE 449657-SP, também da relatoria do Min. Carlos Velloso.

O Supremo Tribunal Federal viria a modificar a posição expressa nesses dois recursos extraordinários, agora por intermédio de sua composição plena, no julgamento de um outro recurso extraordinário (RE 407688-SP), este tendo como relator o Min. Cezar Peluso. Durante o julgamento pelo plenário do STF, os ministros voltaram a debater a questão se o inc. VII do art. 3o. da Lei 8.009/90, ao permitir a penhora de bem de família do fiador, para o pagamento de dívidas decorrentes de aluguel, estaria em confronto (ou não) com o texto da Emenda Constitucional 26.

O novo relator da matéria, Ministro Cezar Peluso, entendeu que a Lei 8.009/90 é clara ao tratar como exceção a impenhorabilidade do bem de família de fiador. Segundo o Ministro Peluso, o cidadão tem a liberdade de escolher se deve ou não avalizar um contrato de aluguel e, nessa situação, o de arcar com os riscos que a condição de fiador implica. No seu voto, o Ministro deixou claro que a regra da penhorabilidade de imóvel do fiador, para pagamento de dívidas de aluguel, não conflita com o direito social de moradia estabelecido na Constituição, visto que o exercício desse direito pode ser alcançado por meio de várias ações do Estado. O direito social à moradia "não se confunde, necessariamente, com direito à propriedade imobiliária ou direito de ser proprietário de imóvel", uma vez que aquele primeiro direito "pode, sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores", ressaltou o Ministro Peluso.

O julgamento pelo pleno do STF (do RE 407688-SP) não foi unânime. O ministro Eros Grau divergiu do relator, no sentido de afastar a possibilidade de penhora do bem de família do fiador. O ministro citou justamente os precedentes (os RE´s 352940 e 449657) relatados pelo ministro Carlos Velloso e decididos no sentido de impedir a penhora do único imóvel do fiador. Esse entendimento também foi citado pelos ministros Carlos Ayres Britto e Celso de Mello, que acompanharam a divergência aberta pelo ministro Eros Grau. Os três votos divergentes no julgamento foram no sentido de que a Constituição ampara a família e a sua moradia e que essa proteção consta do artigo 6º da Carta Magna, de forma que o direito à moradia seria um direito fundamental de 2ª geração, que tornaria indisponível o bem de família para a penhora. Mas prevaleceu o entendimento do relator. Por 7 votos a 3, o plenário acompanhou o voto do ministro Cezar Peluso e negou provimento ao Recurso Extraordinário, mantendo, desta forma, a decisão proferida pelo Tribunal de Alçada de São Paulo, que determinara a penhora do bem de família do fiador.

Esse novo posicionamento do STF, tomado por maioria de votos, com a devida vênia dos que foram vencidos, realmente expressa a melhor interpretação para a matéria. Não nos parece admissível invocar o princípio da isonomia para eliminar a proibição de penhora de imóvel do fiador, por dívidas oriundas do não pagamento dos encargos da locação. Uma coisa é a posição do locatário, a quem a lei quis proteger estabelecendo a impenhorabilidade como regra geral; outra, completamente diferente, é a situação do fiador, que não é parte da locação. Além disso, como ressaltado pelo Ministro Peluso, a regra da penhorabilidade do bem do fiador em certa medida até favorece o direito de moradia de uma outra classe de pessoas - todas aquelas interessadas em locar bem imóvel urbano. Mantendo-se a garantia da penhorabilidade do bem do fiador, aumenta-se a oferta de imóveis oferecidos à locação, o que, por via indireta, favorece o exercício do direito à moradia de pessoas que não são proprietárias de imóvel e precisam dos bens de outros (dos proprietários) para morar. Sem esse tipo de garantia, pode haver uma diminuição da oferta de imóveis à locação ou ocorrer de os proprietários exigirem dos interessados outras espécies de garantias, ainda mais onerosas, o que terminaria por dificultar o papel do Estado como fomentador do direito constitucional à moradia. Nas palavras do Ministro Peluso, "a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito. (...) Se não admitida essa exceção, o resultado pode ser prejudicial à própria comunidade de pessoas interessadas na locação de imóveis, que nem sempre têm condições de oferecer, elas próprias, garantias mais reforçadas. Daí porque, eliminar-se a penhorabilidade do imóvel do fiador, para pagamento de dívidas de aluguel, "romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia".





Recife, 03.03.06.

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