GOVERNO SEM CONTROLE
Só ingênuos acreditam que o governo escolheu o controle externo como reforma política fundamental com o fim de aprimorar o Poder Judiciário. O objetivo é bem outro. Trata-se de um primeiro passo para redimensionar os Poderes da República, aumentando o tamanho do Executivo e diminuindo o do Judiciário, de tal forma que seja este menos capaz de impedir o desrespeito do governo às leis e à Constituição Federal, já que o Legislativo, após a criação das medidas provisórias e das maiorias congressuais construídas com favores políticos e enquadramento, politicamente encolheu.
O governo brasileiro é exercido sem efetivo contraditório, quase sem oposição, amparado por setores dóceis da mídia à custa de créditos e verbas públicas. Para completar o círculo da potência soberana do Executivo, só falta governar com Judiciário e Ministério Público atrelados e politicamente controlados. Estes são hoje, com todas as suas insuficiências, a pedra no sapato de um governo quase imperial.
O poder do governo federal nunca foi tão grande. Tentando abafar crise ética e política deflagrada por obscuro caso de corrupção, o governo não somente manejou sem pudor o Parlamento para impedir investigação por CPI, como praticou manobra diversionista para adotar agenda positiva. Bingo! Proibiram, num estalar dos dedos do presidente, uma atividade até então considerada lícita.
Muito além de saber que os bingos são prejudiciais ao país, o que importa é que o governo trata o assunto com oportunismo político. Pretendia antes regulamentar, mas proibiu. Queria ser sócio da banca, mas a fechou para acabar com assunto que não lhe convinha: investigar os companheiros. Suprimiu milhares de direitos e de empregos, tornando do dia para a noite o lícito em ilícito, transformando água em vinho ou vice-versa, tudo para tirar da sala o sofá maculado. Age por vontade soberana e incontrastável, através de uma única canetada, sem debate, porque o Congresso Nacional, que ali deveria estar, com quase 600 parlamentares, exatamente para decidir tais questões, até agora nem sequer foi ouvido.
Não houve lei, não houve debate parlamentar. Nada, somente a vontade unipessoal do presidente. Editou-se, em segundos, medida provisória sem atendimento aos mínimos requisitos constitucionais de urgência e relevância. É certo que advirá rapidamente o óbvio amém do Parlamento. Amanhã a mais rasteira conveniência, num novo piscar de olhos, retransformará o ilícito em lícito, ficando o dito pelo não dito. Em vez dos requisitos constitucionais, presentes só os pressupostos do arranjo político conjuntural. Vivemos, definitivamente, tempos que lembram o absolutismo.
É preciso refletir, por um minuto ao menos, que por motivos outros, mas através da mesma fo rma imperial, poderão ser suprimidos amanhã outros direitos essenciais ou até mesmo os que estiverem consagrados em decisão judicial. Queixar-se a quem? O Judiciário, por obra do mesmo governo que quase tudo pode, já não será sombra de poder da República e restará inapto para cumprir sua função de proteger, em nome do povo constituinte, os direitos dos cidadãos contra o abuso e a ilegalidade de governantes autoritários e contra a falta de quaisquer limites na atuação dos mercados, formais ou informais, lícitos ou criminosos.
O Executivo, incensado por parcela da mídia e empurrado pelo próprio perfil messiânico, já estará com os dois pés dentro do Judiciário, através do que chamam de controle externo. Rompida a barreira da independência dos Poderes com a criação de órgão externo de tutela do Judiciário, o que se pretende é, em brevíssimo tempo, transformá-lo em braço do governo, formado por representantes direta ou indiretamente por ele indicados.
É razoável supor que em breve lá terão acento, para demitir juízes por meio de rápidos processos administrativos, entidades do movimento social e, quem sabe, do sistema financeiro, com os aplausos do FMI, já que a elite econômica nunca esteve tão próxima do poder como do atual governo neoliberal. E ousem os magistrados julgar com serenidade uma ação de reintegração de posse após uma invasão de terras, ou fixar em sua decisão juros menos extorsivos do que os ilegais praticados por parcela do mercado, ou ainda colocar na cadeia algum assessor corrupto instalado no Palácio do Planalto.
Por trás da cortina de fumaça das reais e sérias deficiências do Judiciário, ter-se-á então consolidado projeto político muito mais profundo: o de governar o país com minúsculos limites constitucionais, ou seja, sem nenhum controle.
* Artigo reproduzido da Folha de São Paulo, de 22.03.04
O governo brasileiro é exercido sem efetivo contraditório, quase sem oposição, amparado por setores dóceis da mídia à custa de créditos e verbas públicas. Para completar o círculo da potência soberana do Executivo, só falta governar com Judiciário e Ministério Público atrelados e politicamente controlados. Estes são hoje, com todas as suas insuficiências, a pedra no sapato de um governo quase imperial.
O poder do governo federal nunca foi tão grande. Tentando abafar crise ética e política deflagrada por obscuro caso de corrupção, o governo não somente manejou sem pudor o Parlamento para impedir investigação por CPI, como praticou manobra diversionista para adotar agenda positiva. Bingo! Proibiram, num estalar dos dedos do presidente, uma atividade até então considerada lícita.
Muito além de saber que os bingos são prejudiciais ao país, o que importa é que o governo trata o assunto com oportunismo político. Pretendia antes regulamentar, mas proibiu. Queria ser sócio da banca, mas a fechou para acabar com assunto que não lhe convinha: investigar os companheiros. Suprimiu milhares de direitos e de empregos, tornando do dia para a noite o lícito em ilícito, transformando água em vinho ou vice-versa, tudo para tirar da sala o sofá maculado. Age por vontade soberana e incontrastável, através de uma única canetada, sem debate, porque o Congresso Nacional, que ali deveria estar, com quase 600 parlamentares, exatamente para decidir tais questões, até agora nem sequer foi ouvido.
Não houve lei, não houve debate parlamentar. Nada, somente a vontade unipessoal do presidente. Editou-se, em segundos, medida provisória sem atendimento aos mínimos requisitos constitucionais de urgência e relevância. É certo que advirá rapidamente o óbvio amém do Parlamento. Amanhã a mais rasteira conveniência, num novo piscar de olhos, retransformará o ilícito em lícito, ficando o dito pelo não dito. Em vez dos requisitos constitucionais, presentes só os pressupostos do arranjo político conjuntural. Vivemos, definitivamente, tempos que lembram o absolutismo.
É preciso refletir, por um minuto ao menos, que por motivos outros, mas através da mesma fo rma imperial, poderão ser suprimidos amanhã outros direitos essenciais ou até mesmo os que estiverem consagrados em decisão judicial. Queixar-se a quem? O Judiciário, por obra do mesmo governo que quase tudo pode, já não será sombra de poder da República e restará inapto para cumprir sua função de proteger, em nome do povo constituinte, os direitos dos cidadãos contra o abuso e a ilegalidade de governantes autoritários e contra a falta de quaisquer limites na atuação dos mercados, formais ou informais, lícitos ou criminosos.
O Executivo, incensado por parcela da mídia e empurrado pelo próprio perfil messiânico, já estará com os dois pés dentro do Judiciário, através do que chamam de controle externo. Rompida a barreira da independência dos Poderes com a criação de órgão externo de tutela do Judiciário, o que se pretende é, em brevíssimo tempo, transformá-lo em braço do governo, formado por representantes direta ou indiretamente por ele indicados.
É razoável supor que em breve lá terão acento, para demitir juízes por meio de rápidos processos administrativos, entidades do movimento social e, quem sabe, do sistema financeiro, com os aplausos do FMI, já que a elite econômica nunca esteve tão próxima do poder como do atual governo neoliberal. E ousem os magistrados julgar com serenidade uma ação de reintegração de posse após uma invasão de terras, ou fixar em sua decisão juros menos extorsivos do que os ilegais praticados por parcela do mercado, ou ainda colocar na cadeia algum assessor corrupto instalado no Palácio do Planalto.
Por trás da cortina de fumaça das reais e sérias deficiências do Judiciário, ter-se-á então consolidado projeto político muito mais profundo: o de governar o país com minúsculos limites constitucionais, ou seja, sem nenhum controle.
* Artigo reproduzido da Folha de São Paulo, de 22.03.04