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A arbitrabilidade de controvérsias nos contratos com o Estado e Empresas Estatais


1. As recentes decisões administrativas e judiciais envolvendo a arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias em contratos celebrados por empresas estatais indicam uma tendência de repúdio à utilização do instituto naqueles casos. Essa posição coloca em risco não apenas a construção correta dos princípios gerais de Direito Administrativo, dos princípios a que se sujeita a Administração Pública, os diversos dispositivos legais aplicáveis assim como a estruturação de parcerias e associações entre o Estado, suas entidades da Administração Indireta e o Setor Privado.



2. A realidade nos mostra que, a par de suas funções típicas, o Estado, a cada momento, está mais presente na vida econômica e social, em muito como decorrência de princípios constitucionais. O surgimento e fortalecimento do Estado empresário, mediante a inclusão da atuação na área econômica dentre as suas diversas funções, não teve por efeito diminuir o papel atribuído à iniciativa privada, mas o de criar um ambiente de atuação paralela e, mais recentemente, de interação e conjugação de esforços para superar desafios e arregimentar recursos e capacitação empresarial.



3. Na perspectiva de atuação, o Estado se defronta com uma realidade insofismável - a escassez de dotações orçamentárias para a implantação de projetos de grande porte e a magnitude de recursos necessários à satisfação das necessidades dos cidadãos e das comunidades. Em países como o Brasil, há uma urgência premente em se desenvolver a área de infraestrutura, condição essencial para que se propicie o desenvolvimento econômico e, por conseqüência, o atendimento adequado das necessidades sociais. O desenvolvimento industrial e comercial dependem de uma infraestrutura adequada; a criação de empregos dependerá de que se evolua para a plenitude da atividade econômica.



4. Instrumentos como a concessão de serviços públicos e privatização exerceram, na década de 90, importante papel na aceleração do processo de atendimento das necessidades de infraestrutura, mediante a exploração pelo setor privado de recursos de propriedade do Estado e prestação de serviços públicos essenciais. A partir de agora, no entanto, o Estado se aproxima do setor privado para, em conjunto, desenvolverem projetos essenciais ao desenvolvimento do País. Essas associações são conhecidas como parcerias público-privadas, identificadas pelo acrônimo PPP, e haverão de conviver com as concessões outorgadas pelo Estado e com as empresas privatizadas, exerçam elas atividades econômicas ou se dediquem à prestação de serviços públicos.



5. Em qualquer dessas circunstâncias, assim como nos casos em que o Estado, diretamente ou por meio de sua Administração Indireta, figure como contratante, certo é que cresce o volume de negócios entre este e o setor privado, propiciando uma vasta gama de arranjos contratuais, desenhados especialmente para regular as relações entre as partes. Exemplos desses contratos encontramos nos contratos de concessão, estes tipicamente contratos administrativos, nos contratos de construção de obras de grande porte, nos instrumentos relativos à compra e venda de bens e serviços, assim como nos arranjos contratuais destinados a regular as relações das partes no capital de empresas e sociedades de propósito específico relativas a projetos de grande porte.



6. Basta que existam interesses em confronto para que se possa admitir o surgimento de controvérsias da mais variada natureza, desde questões relativas à interpretação de textos contratuais à ocorrência de eventos de inadimplemento; isso sem falarmos no impacto de fatos e circunstâncias em cadeias contratuais complexas, dando lugar a efeitos patrimoniais decorrentes de contratos que se situem a montante e a jusante da relação contratual controversa, dada a complexidade e integração da respectiva cadeia contratual.



7. A arbitragem se revela, portanto, como o mecanismo adequado para a solução de controvérsias em relações contratuais da natureza das anteriormente mencionadas.



8. Por outro lado, é importante que se tenha em mente que projetos dessa natureza não se implantam exclusivamente com o aporte de recursos próprios. Aos recursos aportados pelo grupo empreendedor se juntam os recursos de terceiros, sejam os decorrentes de empréstimos de longo prazo tradicionais, sejam os que decorram da emissões de títulos de dívida. Sob essa modalidade de operações estruturadas, as denominadas garantias corporativas do grupo empreendedor são substituídas pela integridade e estabilidade do fluxo de caixa que o projeto seja capaz de gerar, permitindo que o próprio projeto, em sua fase operacional, seja capaz de liquidar os empréstimos e demais obrigações financeiras incorridos para a sua implementação. Na perspectiva dessa forma de estruturação, o surgimento de controvérsias é fator que poderá afetar a estabilidade e integridade do fluxo de caixa do projeto assim considerado, razão pela qual os financiadores desejam ver presente, em todos os contratos destinados a instrumentar o projeto em todas as suas fases, denominados genericamente de contratos do projeto, cláusula compromissória que permita que se venha a decidir por arbitragem qualquer controvérsia surgida entre as diversas partes contratantes.



9. Ocorre, no entanto, que, neste momento, questiona-se mais e mais se a arbitragem pode ser legalmente prevista em contratos em que o Estado e/ou as empresas estatais sejam parte. Até então, ainda que sujeitas a julgamento de recursos interpostos, as decisões administrativas e judiciais se posicionam pela ilegalidade da arbitragem nesses casos. O que pretendemos com este Artigo é analisar as razões alegadas para ilegalidade da utilização da arbitragem nesses contratos e, em sendo possível, apresentar uma construção capaz de permitir que se superem as dúvidas e questionamentos e, consequentemente, que se traga à discussão um conjunto de argumentos fundados na lei e nos princípios de Direito Administrativo que sirvam de suporte.



10. Em linhas gerais, as decisões que negam validade às cláusulas compromissórias se fundam (i) na violação do princípio da legalidade, (ii) na violação do princípio da publicidade e (iii) na violação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Por todos esses argumentos, as decisões existentes inquinam de nulidade a cláusula compromissória e, como conseqüência, determinam a substituição da arbitragem pela submissão aos tribunais estatais ou determinam a suspensão de procedimentos arbitrais instaurados com base em cláusula compromissória com efeito vinculante.



11. Questão paralela à discutida anteriormente, mas sempre inserida no âmbito da violação do princípio da legalidade, é o cabimento ou não da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios em face da linguagem contida no artigo 55, § 2º da Lei de Licitações, o qual analisaremos a seu tempo.



12. Costuma-se afirmar, nas relações entre partes privadas, que o que não for proibido por lei, seja expressamente, seja em decorrência da análise do conjunto de normas legais e regulamentares aplicáveis, será permitido e lícito praticar. No campo do Direito Administrativo, no entanto, essa afirmação perde sentido por aplicação do princípio da legalidade. Segundo esse princípio, a Administração somente poderá atuar se o fizer em estrita observância às disposições legais a ela aplicáveis e às quais deve se sujeitar. Do ponto de vista doutrinário, há vários significados atribuídos ao princípio da legalidade, mas, no que tange à questão objeto deste Artigo, entendemos que nos bastará enfocar a noção de habilitação legal. Assim sendo, para que o Estado ou empresas estatais prevejam a arbitragem em seus contratos, necessário será que sejam detentores de habilitação legal, ou seja, que a lei os permita utilizar a arbitragem como meio de solução de controvérsias contratuais.



13. Muito se tem dito que, a despeito de inexistir uma autorização legal genérica, inclusive que permitisse a adoção da arbitragem em contratos oriundos de procedimentos licitatórios, há leis especiais que contêm essa autorização, como é o caso das regras relativas a cláusulas essenciais de contratos de concessão nas áreas de energia elétrica, gás e petróleo, telecomunicações, transporte aquaviário e rodoviário que dispõem, ainda que utilizando linguagem diferente, sobre a utilização da arbitragem na solução de controvérsias decorrentes dos contratos de concessão. No início deste Artigo, nos referimos a ser o contrato de concessão o contrato administrativo típico no universo de contratos tidos como desse tipo. Por isso mesmo, nos questionamos quais as razões que determinariam que o Estado, enquanto Poder Concedente, pudesse prever a arbitragem para solução de controvérsias, enquanto ele ou qualquer de suas empresas, no desempenho de relações comerciais típicas do setor privado, não o poderiam fazer. Parece existir nisso uma inconsistência, pois na concessão de seus direitos a terceiros pode o Estado ajustar que as controvérsias sejam solucionadas por arbitragem, enquanto que em contratos comerciais esse direito não encontraria suporte. Esta questão intrigante deverá ser analisada sob o prisma da arbitrabilidade.



14. A arbitrabilidade comporta dois aspectos: a arbitrabilidade subjetiva, ou seja, quem poderá ser parte num procedimento arbitral, e a arbitrabilidade objetiva, equivalendo dizer quais as questões e matérias que possam ser objeto de solução por arbitragem.



15. As decisões administrativa e judicial a que nos referimos no início deste Artigo se fundamentam em argumentos relacionados, a um só tempo, à falta de cumprimento de requisitos necessários a assegurar a arbitrabilidade subjetiva e objetiva, decidindo-se pela ilegalidade nos casos examinados, chegando-se à suspensão de procedimentos existentes. Na medida em que inexista lei que autorize expressamente o Estado e as empresas estatais a se utilizar da arbitragem, estes não poderiam ser legítima e legalmente partes em procedimentos dessa natureza - inarbitrabilidade subjetiva - enquanto que a predominância do interesse público sobre o particular, elemento típico do Estado e inerente à natureza das sociedades que controla, acarretaria a indisponibilidade dos direitos - inarbitrabilidade objetiva.



16. Será realmente que é correto se afirmar que, salvo os casos mencionados nas leis relativas a setores de infraestrutura e de gás e petróleo, o Estado e suas empresas não dispõem de autorização legal para submeter litígios e controvérsias à arbitragem? São o Estado e, em nível hierárquico inferior a ele, as empresas por ele controladas, detentores de status tal que os impeça de ser parte num procedimento arbitral? Qual seria o fundamento do dispositivo legal contido em cada uma das leis mencionadas que permitiria a arbitragem nos contratos de concessão? Parece-nos evidente que a questão relativa à inarbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado não seja de natureza a permitir que se possa superá-la para determinadas áreas em detrimento de outras. A prevalecer o entendimento corrente, somos obrigados a admitir a inconsistência lógica, já que o sujeito da arbitragem seria o mesmo Estado ou qualquer de suas empresas controladas. Além disso, se impossibilidade existe à luz dos argumentos discutidos, essa impossibilidade decorre de princípios estruturais de Direito Administrativo e que não podem ser resolvidos por uma disposição legal autorizativa. A lei administrativa se baseia em princípios consagrados pelo Direito Administrativo e não poderá ela permitir, por seu texto, o que com eles seja incompatível e não possa subsistir, já que esses princípios desempenham importante papel no desenvolvimento e sedimentação dos respectivos institutos. Os princípios gerais, e é sempre útil que se relembre, exercem influência quando da elaboração das leis e são elemento valioso para a integração do direito.



17. Portanto, entendemos que, a despeito de respeitáveis opiniões, não se possa tratar como exceção a matéria da arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado. Assim sendo, somos de opinião que inexiste qualquer princípio geral que, per se, impeça o Estado e suas empresas de participar de procedimentos arbitrais. Superado este obstáculo, entendemos, entretanto, que, por força do princípio da legalidade, a arbitrabilidade subjetiva esteja a depender de autorização legal. Finalmente, entendemos que essa autorização geral existe e está presente no texto do artigo 1º da Lei de Arbitragem.



18. O artigo 1º antes mencionado estatui que:



"Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis."



Na verdade, a Lei de Arbitragem optou por cingir a arbitrabilidade subjetiva às pessoas capazes de contratar. Inexiste, a nosso ver, no texto de lei, qualquer traço ou sinal que permita excluir do conceito de arbitrabilidade subjetiva o Estado e as empresas por ele controladas e que integram a Administração Indireta. O sentido da palavra "pessoas", na forma utilizada pela lei, abrange, com recurso às disposições contidas no Código Civil, inclusive e além das pessoas físicas e jurídicas de direito privado, as pessoas jurídicas de direito público interno e, em especial, o Estado (União, Estados e Municípios), as autarquias, assim como as empresas estatais. Portanto, o Estado e empresas por ele controladas estão devidamente autorizados a utilizar-se da arbitragem, sendo que essa autorização tem caráter geral e está inserida no texto legal que regula, no Brasil, o instituto da arbitragem.



19. É justamente por essa razão que entendemos que as disposições relativas à arbitragem e inseridas nas leis especiais que regulamentam determinados setores e atividades não se constituem em exceção a um princípio que teoricamente impediria que o Estado e suas empresas se sujeitassem à arbitragem. Essas leis, por não serem específicas em relação à arbitragem, estão alinhadas com a autorização geral contida na Lei de Arbitragem. Se examinarmos o conteúdo dessas disposições, constataremos que não têm elas o objetivo precípuo de autorizar que as controvérsias surgidas nos contratos por elas regulados sejam dirimidas por arbitragem. O foco central dessas disposições é determinar as cláusulas contratuais que são tidas como essenciais em contratos da natureza daqueles por ela regulados para assegurar a validade e legalidade dos mesmos. Assim sendo, baseadas na autorização geral contida na Lei de Arbitragem e requerida pelo princípio da legalidade, outorgam elas à cláusula que regule a utilização da arbitragem nesses contratos o caráter de essencialidade. É claro que, por serem leis de mesma hierarquia, a declaração do caráter de essencialidade reitera (mas, sublinhe-se, não cria) qualquer tipo de autorização legal, até porque esta já existe.



20. No entanto, o fato de haver autorização legal para que se assegure a arbitrabilidade subjetiva nos contratos com o Estado e empresas por ele controladas não é suficiente para que se afirme que, em todos os casos, a arbitragem será aplicável. Resta-nos, portanto, examinar a questão da arbitrabilidade objetiva nos contratos com o Estado. A Lei de Arbitragem limitou o escopo de sua aplicação a litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Se, a exemplo das pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito privado, onde nem todos os direitos em relação aos quais possam surgir controvérsias são passíveis de solução por arbitragem, o mesmo acontece com o Estado e com empresas por ele controladas. Em vários e valiosos estudos doutrinários recentes, afirma-se que a arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas é cabível, mas conclui-se afirmando que isso somente será verdadeiro em relação a direitos patrimoniais disponíveis. E, em geral, para-se nessa afirmação. A preocupação deste Artigo, a partir de então, é determinar que direitos estão sob a titularidade do Estado e das empresas por ele controladas que são, por sua natureza mesma, indisponíveis e que, consequentemente, não dariam lugar à instauração de procedimento arbitral caso surgissem controvérsias em relação aos mesmos.



21. No encaminhamento da discussão da questão central deste Artigo, vimos insistindo na importância da arbitragem para a solução de controvérsias decorrentes de arranjos contratuais em que o Estado e suas empresas controladas são parte. Estamos focando no campo contratual. Se olharmos para o período em que ocorreu o desenvolvimento da teoria do contrato administrativo, constataremos que logo se concluiu que as regras de direito aplicáveis aos contratos privados, se tomadas em sua integralidade, não atenderiam aos pressupostos do Direito Administrativo. Cotejando as regras aplicáveis àqueles contratos com as peculiaridades do papel desempenhado pelo Estado, essas regras deixavam de acomodar a questão relativa à preponderância do interesse público sobre o particular. O papel do Estado deve ser desempenhado em prol da coletividade e essa regra se sobreporá a qualquer interesse particular. Dessa forma, o equilíbrio das partes ao longo de toda a relação contratual e a imutabilidade dos ajustes contratuais seriam incompatíveis com a prevalência do interesse público. Assim sendo, muito embora se tenham tomado de empréstimo regras aplicáveis aos contratos entre particulares, criou-se em favor do Estado, e porque não dizer, da Administração Pública, determinadas regras que refletem a prevalência do interesse público sobre o particular colocando-a em situação privilegiada sobre o contratante particular o que, numa relação contratual exclusivamente entre partes privadas, seria considerado ilícito. A essas regras ou, melhor dizendo, a essas peculiaridades do contrato administrativo que o diferem do contrato entre particulares denominamos de cláusulas exorbitantes. E quais são essas cláusulas exorbitantes?



22. Em grande parte, as cláusulas exorbitantes foram elevadas à categoria legal e se encontram elencadas no artigo 58 da Lei de Licitações. O texto legal as trata como prerrogativas conferidas à Administração, o que expressa a posição de supremacia da Administração sobre o particular contratado. Dentre as cláusulas exorbitantes, podemos citar: o direito de alteração unilateral do contrato, de sua rescisão unilateral, de fiscalização de sua execução, de ocupação provisória dos bens, pessoal e serviços objeto do contrato, do acréscimo e supressão limitado a 25% do objeto do contrato, a imposição de penalidades e a inaplicabilidade da exceção de contrato não cumprido ("exceptio non adimpleti contractus"). Evidentemente, em se tratando de cláusulas dessa natureza, certo é que a aplicação das mesmas deverá estar motivada e, em muitos dos casos, a própria lei indica as condições de aplicação ou caberá à Administração demonstrar a existência de um interesse público a proteger.



23. Aspecto interessante é o relativo ao tratamento das conseqüências patrimoniais da aplicação das cláusulas exorbitantes pela Administração. Constitui esse tratamento um direito indisponível? Tomemos, por exemplo, o caso da alteração unilateral do contrato pela Administração. Ao permitir que a Administração assim proceda, a lei, no entanto, estabelece que isso será possível para adequação do contrato às finalidades do interesse público e ressalva que os direitos do contratado deverão ser preservados. O texto legal indica, ainda, que, nesse caso, deve-se proceder à revisão das cláusulas econômico-financeiras para a manutenção do equilíbrio contratual (art. 58, § 2º da Lei de Licitações). Estamos diante do denominado equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, elevado à categoria de garantia constitucional, na forma do art. 37 (xxi) da Constituição Federal, o qual está regulado no art. 65, § 6º da lei de Licitações. De uma forma ou de outra, podemos incluir o equilíbrio econômico-financeiro juntamente com o fato do príncipe e o fato da Administração dentre os eventos que determinam a mutabilidade da relação contratual, expressos em cláusulas exorbitantes e caracterizando-se, portanto, como direitos indisponíveis. Pois bem, somos de opinião que a determinação da existência ou não do direito de invocar o equilíbrio econômico-financeiro se enquadra na categoria de direitos indisponíveis não sujeitos à arbitragem, mas, ao mesmo tempo, entendemos que a definição do mecanismo para que se restaure a equação inicial é direito disponível e, portanto, quaisquer controvérsias a ele relativa são passíveis de arbitragem, o que equivale dizer que o tratamento das conseqüências patrimoniais é matéria, a nosso ver, arbitrável.



24. Em síntese, entendemos que, nos contratos com o Estado e suas empresas, estes dispõem de autorização legal para submeter as respectivas controvérsias à arbitragem, nos termos do art. 1º da Lei de Arbitragem (arbitrabilidade subjetiva), mas as controvérsias relativas a cláusulas exorbitantes não darão lugar à arbitragem por se caracterizarem como direitos indisponíveis, estando excluídas, portanto, do escopo da arbitrabilidade objetiva.



25. Esclarecidos esses aspectos fundamentais, certamente questionará o leitor como essa construção se coaduna com a disposição contida no art. 55, § 2º da Lei de Licitações que é, em geral, interpretada como vedando a utilização da arbitragem e determinando o recurso ao foro estatal. Somos forçados a concordar que, inexistindo uma forma de harmonização desses dois entendimentos contraditórios, a construção desenvolvida estará prejudicada. Mas não nos parece ser este o caso. Senão vejamos.



26. Toda a celeuma em torno desse artigo decorre do uso da expressão "...que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual..." Com base nessa linguagem, entendeu-se que a lei optara pelo recurso aos tribunais estatais, vedando, consequentemente, o recurso à arbitragem. Se desvincularmos essa parte do texto do que se lhe segue, certamente seremos levados a essa conclusão. No entanto, o texto legal continua estabelecendo que "...salvo o disposto no § 6º do art. 32 desta Lei." O mencionado parágrafo, por sua vez, menciona outras disposições da mesma lei que são excepcionadas de sua aplicação. O que é importante reter, entretanto, é que todas essas disposições se referem a licitações internacionais com características excepcionais (tais como, aquelas com recursos de financiamento outorgado por organismo internacional, por agência de cooperação, para entrega de bens no exterior, assim como nos casos de licitação para aquisição de bens por unidade administrativa com sede no exterior), caso em que a aplicação obrigatória da regra do foro da sede da Administração estaria dispensada. Ora, se analisarmos a disposição em sua integralidade, somos forçados a concluir que o uso da expressão "foro da sede da Administração" é tomado em sua acepção geográfica, ou seja, do local onde a entidade licitadora está localizada, e não no sentido de tribunal estatal. Não faria o menor sentido a legislação permitir que, no exterior, as controvérsias se dirimissem até mesmo por arbitragem, enquanto que, no Brasil, o recurso aos tribunais estatais seria regra mandatória e inderrogável. Por essa razão, entendemos inexistir, na Lei de Licitações, qualquer empecilho ou obstáculo à utilização da arbitragem para a solução de controvérsias oriundas dos respectivos contratos, sendo esta possível sempre e quando a controvérsia se refira a direitos patrimoniais disponíveis não decorrentes de cláusulas exorbitantes.



27. Muito embora a construção apresentada elimina os demais argumentos que fundamentam as decisões referidas no início deste Artigo, entendemos que devamos analisar a questão relativa ao interesse público como inerente à natureza do papel desempenhado pelo Estado e por suas empresas controladas. Reiteramos que, a nosso ver, a questão da supremacia do interesse público sobre o particular é a razão mesma de ser da existência das cláusulas exorbitantes e que, neste caso, desapareceria a razão para a sua análise em separado. Entretanto, é importante que se examine a questão. Somos de opinião que o interesse público é muito mais inerente à natureza da atividade desenvolvida do que da natureza jurídica de quem a desenvolve. Se assim não fosse, estaríamos diante de uma enorme contradição. Tomemos, por exemplo, o segmento de geração de energia elétrica. No modelo hoje existente, esse segmento é desenvolvido, na maior parte dos casos, por sociedades de economia mista federais e estaduais, sendo que parcela minoritária está em mãos de empresas privadas decorrentes de privatização. Por expressa disposição constitucional, os serviços de energia elétrica, em qualquer de seus segmentos, são considerados serviço público. Em assim sendo, há neles o componente da supremacia do interesse público sobre o particular. Portanto, se vincularmos o interesse público à natureza do capital social da empresa geradora, em nosso exemplo, chegaremos à conclusão de que as que estejam sob o controle privado poderão se utilizar da arbitragem para dirimir as respectivas controvérsias contratuais enquanto que as empresas estatais estariam impedidas de fazê-lo. Ora, a questão é lógica antes de ser jurídica. Como é que uma atividade idêntica poderá ser tratada de forma distinta a depender da natureza do capital social de quem a desenvolve? Portanto, invocar, nos casos de empresas sob controle estatal no exercício de atividades de concessão igualmente desempenhadas por empresas privadas, a impossibilidade de recurso à arbitragem para solução de controvérsias, parece ser descabido e sem fundamento legal que a suporte.



28. Outro aspecto levantado como obstáculo à utilização da arbitragem é que esta representaria uma violação ao princípio da publicidade, já que uma das características da arbitragem é ser um procedimento sigiloso. Esta afirmação não é absoluta. É certo que as partes podem optar por dar um tratamento sigiloso à arbitragem, mas isso dependerá do caso específico. A Lei de Arbitragem, e a exemplo dela os regulamentos de entidades arbitrais, é silente quanto a este ponto, deixando a definição às partes. Logo, à vista do princípio da publicidade a que o Estado e suas empresas estão sujeitos, nada impede que se elimine esse elemento dos respectivos procedimentos, razão pela qual essa argumentação não procederia. Mas resta a questão de como se proceder nas arbitragens em que o Estado e suas empresas sejam parte, ou melhor dizendo, qual seria a extensão de aplicação do princípio da publicidade. Certamente, o respeito a esse princípio não irá desaguar na abertura de audiências realizadas no contexto da arbitragem a todo e qualquer cidadão. Não é isso, até porque a Lei de Arbitragem designa o árbitro como o juiz de fato e de direito, estando ele dotado dos poderes necessários para restringir o acesso à audiência às partes, seus advogados e terceiros a eles vinculados e de interesse do procedimento, em especial a reunião dos árbitros para decidir a questão e elaboração da sentença arbitral, de cujo ato nem mesmo as partes participam. A Administração e seus agentes, por expressa disposição constitucional (art. 70 e seu § único da Constituição Federal), estão submetidos à obrigação de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, seja do Poder Legislativo, por meio dos Tribunais de Contas, seja pelo sistema de controle interno de cada Poder. Entendemos que a aplicação do princípio da publicidade estará satisfeita na medida em que as partes sujeitas a tal obrigação reportem a esses órgãos de controle o andamento e resultados da arbitragem. No entanto, somos de opinião, e vale ressaltar, que o fato da arbitragem em contratos com o Estado e suas empresas não se beneficiar do sigilo não exime os árbitros do cumprimento de seu dever de discrição, estando impedidos de revelar quaisquer detalhes do procedimento arbitral, salvo para os órgãos de controle externo e interno a que está sujeita a Administração e sempre que por estes solicitado. Nos demais casos, prevalecerá o dever legal de discrição do árbitro, que contempla o sigilo.



29. Um ponto relevante a se determinar é se a arbitragem que envolva o Estado e suas empresas controladas poderá ser fundada na equidade. Neste ponto, somos definitivos. Na medida em que o Estado e suas empresas estão sujeitos ao princípio da legalidade, entendemos que somente poderão prever na cláusula compromissória que a arbitragem será baseada na lei, e jamais na equidade. A arbitragem fundada na equidade seria uma violação flagrante, a nosso ver, ao princípio da legalidade.



30. A última questão relevante neste tema se refere à escolha do árbitro por parte do Estado e de suas empresas controladas. Pode o Estado ou qualquer de suas empresas controladas nomear como árbitro um funcionário ou empregado público? Entendemos que isso não será possível. A Lei de Arbitragem, em seu artigo 13, § 6º, estabelece que o árbitro deverá, ao longo de todo o procedimento arbitral, desempenhar suas funções, dentre outras características, com imparcialidade e independência, razão porque criou declarações de independência quando de sua nomeação e criou o dever de revelar fatos e circunstâncias que possam de qualquer forma afetá-la. Seja regido pelo regime estatutário ou CLT, o funcionário ou empregado público, conforme o caso, está adstrito ao dever de lealdade ou fidelidade à Administração e ao dever de obediência às determinações hierárquicas. Entendemos que essa sujeição é incompatível com a condição exigida por lei do árbitro de ser independente e imparcial. Logo, nossa posição é a de não admitir o funcionário ou empregado público como árbitro. No entanto, essa conclusão não afeta o direito do Estado de eleger livremente o árbitro. Poderá a escolha recair em qualquer terceiro que reúna as condições necessárias para integrar o Tribunal Arbitral, desde que não seja ele funcionário ou empregado público, da mesma forma que o particular poderá ver impugnado árbitro que indicar por não demonstrar independência ou imparcialidade.



Estamos cientes de que as conclusões contidas neste Artigo representam uma posição ousada e inovadora. Nossa intenção é, apenas e tão somente, a de oferecer ao debate um conjunto de argumentos coerentes e que decorrem da interpretação das leis vigentes e dos princípios fundamentais de Direito Administrativo. Acreditamos estar trazendo à discussão argumentos novos quanto à determinação dos direitos indisponíveis do Estado e de suas empresas controladas. No mais, caberá a nós esperar que a questão seja dirimida, em caráter definitivo, por quem de direito e a quem a Constituição Federal atribui essa competência.





São Paulo, outubro de 2003.

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