A QUESTÃO DA PORNOGRAFIA INFANTIL VIRTUAL - A LEI DOS EUA QUE TENTOU COMBATER SUA DIFUSÃO
Autor: Demócrito Reinaldo Filho - Fonte: IBDI - Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática
Não existe qualquer dúvida quanto à constitucionalidade de se proibir a pornografia infantil, isto é, aquela que é produzida mediante a exploração de crianças reais. O que se dizer, então, da pornografia infantil virtual, assim considerada a que é produzida por meio da utilização de pessoas adultas com aspecto de crianças ou através simplesmente do uso de animação computacional? A proibição dessa segunda categoria seria inconstitucional, por ferir o princípio a liberdade de expressão, ou não?
Esse assunto foi motivo de acesos debates por ocasião do julgamento do caso Ashcroft v. Free Speech Coalition, decidido em 16 de abril de 2002. Nesse julgamento, a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucionais dois dispositivos do Child Pornography Prevention Act (CPPA), uma lei de 1996 que expandiu o conceito de pornografia infantil. Antes dela, "pornografia infantil" era definida na legislação federal como imagens ou qualquer descrição visual (filmes, retratos, vídeo, pintura) que envolvesse o uso de um menor (de 18 anos de idade) em ato sexual explícito. O CPPA acrescentou ao conceito de pornografia infantil "qualquer representação visual, incluindo qualquer fotografia, filme, vídeo, pintura, ou imagem gerada por computador" que "seja, ou aparente ser, de um menor engajado em conduta sexual explícita" , ou ainda qualquer representação visual que "seja propagandeada, promovida, apresentada, descrita ou distribuída de tal maneira que carregue a impressão de que o material é ou contém uma representação visual de um menor engajado em conduta sexual explícita" . Assim, na sua primeira parte a Lei pretendeu banir o material (fotografias e representações gráficas) que se enquadre no conceito do que se convencionou chamar de "pornografia infantil virtual", que, como já dito, são aquelas imagens que aparentam descrever cenas de menores envolvidos em relações sexuais explícitas, mas que são produzidas sem a participação efetiva de uma criança (menor de 18 anos), através da utilização de adultos de aparência infantil ou por meio do uso de recursos de computação gráfica. A segunda parte da Lei visava a proibir a distribuição desse material.
Temerosos de que a Lei pudesse afetar seus interesses, uma associação de comércio de material para adultos e a Free Speech Coalition, entre outros, propuseram uma ação argumentando que as disposições eram muito abrangentes, atingindo inclusive obras e trabalhos artísticos protegidos pela direito à liberdade de expressão, garantido na 1a. Emenda da Constituição norte-americana. A Corte Distrital (de primeira instância) descartou a alegação, mas a Corte para o 9o. Circuito deu provimento a recurso para julgar procedente a ação.
Em termos gerais, pornografia não pode ser proibida nos EUA. Somente em casos extremos, quando algum material se enquadra no conceito de "obscenidade" (obscenity) é que pode haver limitação à liberdade de expressão - o conceito (teste) de obscenidade foi definido num precedente jurisprudencial histórico (o caso Miller v. California), e tem sido utilizado até hoje. Mas pornografia retratando criança pode ser proibida quer se enquadre ou não no conceito de obscenidade, pois se considera que o Estado tem interesse em proteger as crianças contra a exploração ligada ao processo de produção desse tipo de material (como ficou decidido em outro precedente, o caso New York v. Ferber), bem como tem o interesse de processar e punir as pessoas responsáveis por esse tipo de exploração sexual.
A Corte para o 9o. Circuito considerou que as normas do CPPA eram substancialmente abrangentes, pois davam margem à proibição de material não obsceno e sequer produzido com a utilização efetiva de crianças. Com efeito, sob o conceito traçado no julgamento do caso Miller, somente pode ser considerado obsceno algo que, tomado como um todo, apela a interesses prurientes, é patentemente ofensivo à luz dos padrões comunitários ou ressente-se de sério valor literário, artístico, político ou científico. A definição do CPPA, por sua vez, limita a exposição de qualquer material que contenha descrição de atividade sexual explícita, mesmo que não seja patentemente ofensivo. A Corte frisou que a idéia de adolescentes envolvidos em relações sexuais nem sempre conflita com os padrões morais comunitários, um fato da moderna sociedade que vem sendo tema das artes e da literatura ao longo dos tempos, retratado inclusive em filmes aclamados. A prevalecer a Lei, uma simples cena ou representação gráfica desse tipo de material sujeitaria os responsáveis pela sua exposição à severa punição, sem qualquer consideração ao aspecto artístico do trabalho. A Corte rejeitou o argumento do Governo de que imagens produzidas por computação gráfica não podem ser distinguidas daquelas em que crianças reais são efetivamente utilizadas na sua produção, devendo, portanto, ambas as categorias serem proibidas. Para rejeitá-lo, lembrou que o fundamento para a proibição da pornografia infantil, conforme assentado no caso Ferber, residia na intrínseca relação entre a produção e distribuição desse material e o abuso sexual de crianças. A circulação da imagem de cena desse tipo equivale a continuar violando a integridade da criança que nela teve participação. O Estado, portanto, tem interesse em desmantelar a rede de produção e distribuição de pornografia infantil. Já uma imagem que, por si mesma, não é a representação de um efetivo abuso sexual a criança (por não empregar crianças reais) não vitimiza ninguém com a sua produção. A chamada "pornografia infantil virtual" não está intrinsecamente relacionada com o abuso sexual de crianças. Para a Corte, mesmo que se considere que a difusão desse material pode incentivar o abuso sexual a crianças, não há uma relação direta entre uma coisa e a outra, mas apenas um potencial não quantificado. Se o material não é resultado de ato efetivo de abuso sexual, sua produção e distribuição não pode ser proibida sob invocação do precedente firmado no caso Ferber, pois este construiu um noção de ilicitude de como a pornografia infantil é produzida, não o que ela comunica. A Corte afastou o argumento de que a pornografia infantil alimenta o apetite de pedófilos e os encoraja a tomar parte em condutas ilícitas. Citando outro precedente (Stanley v. Geórgia), lembrou que a mera tendência de encorajar atos ilícitos não é razão suficiente para banir um tipo de discurso (speech), quando ausente uma direta conexão entre este e a atividade eminentemente ilegal.
Dessa vez, portanto, o Governo americano não foi feliz em distinguir pornografia infantil real da simplesmente virtual, para fins de proibição também desta última categoria. Isso viria ser conseguido em uma outra Lei, o "Protect Act", assinada neste ano pelo Presidente George Bush. Mas isso será objeto de outro artigo nosso.
Recife, 11.09.03
Esse assunto foi motivo de acesos debates por ocasião do julgamento do caso Ashcroft v. Free Speech Coalition, decidido em 16 de abril de 2002. Nesse julgamento, a Suprema Corte dos EUA declarou inconstitucionais dois dispositivos do Child Pornography Prevention Act (CPPA), uma lei de 1996 que expandiu o conceito de pornografia infantil. Antes dela, "pornografia infantil" era definida na legislação federal como imagens ou qualquer descrição visual (filmes, retratos, vídeo, pintura) que envolvesse o uso de um menor (de 18 anos de idade) em ato sexual explícito. O CPPA acrescentou ao conceito de pornografia infantil "qualquer representação visual, incluindo qualquer fotografia, filme, vídeo, pintura, ou imagem gerada por computador" que "seja, ou aparente ser, de um menor engajado em conduta sexual explícita" , ou ainda qualquer representação visual que "seja propagandeada, promovida, apresentada, descrita ou distribuída de tal maneira que carregue a impressão de que o material é ou contém uma representação visual de um menor engajado em conduta sexual explícita" . Assim, na sua primeira parte a Lei pretendeu banir o material (fotografias e representações gráficas) que se enquadre no conceito do que se convencionou chamar de "pornografia infantil virtual", que, como já dito, são aquelas imagens que aparentam descrever cenas de menores envolvidos em relações sexuais explícitas, mas que são produzidas sem a participação efetiva de uma criança (menor de 18 anos), através da utilização de adultos de aparência infantil ou por meio do uso de recursos de computação gráfica. A segunda parte da Lei visava a proibir a distribuição desse material.
Temerosos de que a Lei pudesse afetar seus interesses, uma associação de comércio de material para adultos e a Free Speech Coalition, entre outros, propuseram uma ação argumentando que as disposições eram muito abrangentes, atingindo inclusive obras e trabalhos artísticos protegidos pela direito à liberdade de expressão, garantido na 1a. Emenda da Constituição norte-americana. A Corte Distrital (de primeira instância) descartou a alegação, mas a Corte para o 9o. Circuito deu provimento a recurso para julgar procedente a ação.
Em termos gerais, pornografia não pode ser proibida nos EUA. Somente em casos extremos, quando algum material se enquadra no conceito de "obscenidade" (obscenity) é que pode haver limitação à liberdade de expressão - o conceito (teste) de obscenidade foi definido num precedente jurisprudencial histórico (o caso Miller v. California), e tem sido utilizado até hoje. Mas pornografia retratando criança pode ser proibida quer se enquadre ou não no conceito de obscenidade, pois se considera que o Estado tem interesse em proteger as crianças contra a exploração ligada ao processo de produção desse tipo de material (como ficou decidido em outro precedente, o caso New York v. Ferber), bem como tem o interesse de processar e punir as pessoas responsáveis por esse tipo de exploração sexual.
A Corte para o 9o. Circuito considerou que as normas do CPPA eram substancialmente abrangentes, pois davam margem à proibição de material não obsceno e sequer produzido com a utilização efetiva de crianças. Com efeito, sob o conceito traçado no julgamento do caso Miller, somente pode ser considerado obsceno algo que, tomado como um todo, apela a interesses prurientes, é patentemente ofensivo à luz dos padrões comunitários ou ressente-se de sério valor literário, artístico, político ou científico. A definição do CPPA, por sua vez, limita a exposição de qualquer material que contenha descrição de atividade sexual explícita, mesmo que não seja patentemente ofensivo. A Corte frisou que a idéia de adolescentes envolvidos em relações sexuais nem sempre conflita com os padrões morais comunitários, um fato da moderna sociedade que vem sendo tema das artes e da literatura ao longo dos tempos, retratado inclusive em filmes aclamados. A prevalecer a Lei, uma simples cena ou representação gráfica desse tipo de material sujeitaria os responsáveis pela sua exposição à severa punição, sem qualquer consideração ao aspecto artístico do trabalho. A Corte rejeitou o argumento do Governo de que imagens produzidas por computação gráfica não podem ser distinguidas daquelas em que crianças reais são efetivamente utilizadas na sua produção, devendo, portanto, ambas as categorias serem proibidas. Para rejeitá-lo, lembrou que o fundamento para a proibição da pornografia infantil, conforme assentado no caso Ferber, residia na intrínseca relação entre a produção e distribuição desse material e o abuso sexual de crianças. A circulação da imagem de cena desse tipo equivale a continuar violando a integridade da criança que nela teve participação. O Estado, portanto, tem interesse em desmantelar a rede de produção e distribuição de pornografia infantil. Já uma imagem que, por si mesma, não é a representação de um efetivo abuso sexual a criança (por não empregar crianças reais) não vitimiza ninguém com a sua produção. A chamada "pornografia infantil virtual" não está intrinsecamente relacionada com o abuso sexual de crianças. Para a Corte, mesmo que se considere que a difusão desse material pode incentivar o abuso sexual a crianças, não há uma relação direta entre uma coisa e a outra, mas apenas um potencial não quantificado. Se o material não é resultado de ato efetivo de abuso sexual, sua produção e distribuição não pode ser proibida sob invocação do precedente firmado no caso Ferber, pois este construiu um noção de ilicitude de como a pornografia infantil é produzida, não o que ela comunica. A Corte afastou o argumento de que a pornografia infantil alimenta o apetite de pedófilos e os encoraja a tomar parte em condutas ilícitas. Citando outro precedente (Stanley v. Geórgia), lembrou que a mera tendência de encorajar atos ilícitos não é razão suficiente para banir um tipo de discurso (speech), quando ausente uma direta conexão entre este e a atividade eminentemente ilegal.
Dessa vez, portanto, o Governo americano não foi feliz em distinguir pornografia infantil real da simplesmente virtual, para fins de proibição também desta última categoria. Isso viria ser conseguido em uma outra Lei, o "Protect Act", assinada neste ano pelo Presidente George Bush. Mas isso será objeto de outro artigo nosso.
Recife, 11.09.03