ARMAS DE FOGO: DESFAZENDO MITOS - Informativo do Movimento \"Viva Rio\" 11/09/2003
O Viva Rio, buscando contribuir com os parlamentares no processo de votação do Estatuto do Desarmamento, preparou esse informativo sobre um assunto tabu no Brasil: armas de fogo. A esse respeito, há pouca estatística e nenhuma transparência. Exceção no país, os sucessivos governos do Estado do Rio têm aberto os dados e o depósito de armas à pesquisa por parte de especialistas. O resultado, apesar de parcial, é um retrato do universo secreto do tráfico de armas, caixa preta que favorece a criminalidade e a violência no país. Aqui, os parlamentares poderão obter os números que retratam essa realidade, comparados com a experiência internacional, de forma a destruir mitos e retificar os dados fictícios. Nosso propósito é fornecer as informações essenciais para que o público possa tomar as medidas necessárias à proteção de sua família e a sua segurança.
Uma realidade chocante
- A preocupação número um dos brasileiros é com a insegurança, segundo as últimas pesquisas de opinião. Dando-se conta de que a proliferação de armas de fogo é um dos fatores de aumento da letalidade nos crimes, 78% da população desejam a proibição do porte de armas por civis, e 63,6% se manifestam pela proibição de sua posse (pesquisa do Instituto Sensus em 24 Estados, junho 2003). Em 2000, o Instituto Vox Populi já havia apontado a mesma tendência nacional: 78% pela proibição do porte, e 60% pela proibição da posse. No Rio, 80,20% dos cariocas querem proibir a venda de armas para civis (pesquisa de rua da TV Globo, 21.07.03). [Enquetes via Internet, que circulam por aí, não têm o menor valor, pois sua amostragem não é representativa, distorcendo o resultado.
- Os brasileiros correm 4 vezes mais risco de morrer por arma de fogo que a média dos demais países (ONU,1999). O Brasil, com apenas 2,8% da população mundial, responde por cerca de 11% dos homicídios por arma de fogo no mundo (Cukier, Canadian Foreign Policy, 1998). As taxas de mortes de jovens do sexo masculino entre 15 e 29 anos no Estado do Rio são de 239 por 100 mil (ISER, 2002). O Brasil não está em guerra, mas é o país que mais mata com arma de fogo (ONU, 1999). Apenas no ano passado, cerca de 40.000 pessoas foram fulminadas com essas armas (SENASP, julho 2003). Em 6 anos de guerra do Vietnã, morreram cerca de 56.000 soldados norte-americanos. Temos quase um Vietnã por ano no Brasil!
Índice por 100 mil habitantes. Fontes: Datasus, pesquisa ISER, 1999
- A violência urbana é causada por uma combinação de fatores. Com essas condições favoráveis, a proliferação de armas de fogo faz explodir a violência. Existem países com muitas armas e pouca violência, como Canadá e Suíça, é difícil encontrar países violentos sem disseminação de armas. Não sendo a causa da violência, as armas de fogo são o seu principal instrumento, tornando-a letal. Em nosso país, 68 % dos homicídios são cometidos com essas armas (UNESCO, 2002).
"Quem tem arma pessoal, quer matar ou não confia em que lhe defende. A arma é a ilusão da defesa privada contra a defesa coletiva"(Deputado Paulo Delgado)
Qual a Relação entre Compra Legal e Tráfico de Armas?
- Pesquisa concluída esse mês, após analisar dados sobre 77.527 pistolas e revólveres fabricados pela Taurus, apreendidas no Estado do Rio entre 1951 e 2003, demonstrou que 25.648 dessas armas, isto é, 33,1% delas, foram legalmente registradas antes de caírem nas mãos de criminosos ou situação ilegal:
Essas armas, compradas de forma lícita, mergulharam no tráfico clandestino de variadas formas: roubo, furto, perda, revenda, uso indevido, etc. Diferentes formas, através das quais "cidadãos de bem" , involuntariamente muitos deles, estão abastecendo o crime organizado. Está desfeito o mito que separa as "armas do bem" das "armas do mal": 1/3 dessas últimas provêm do mercado legal.
"A farra do porte de arma alimenta o mercado clandestino"
(Deputado Luiz Eduardo Greenhalgh)
Armas Mais Usadas pelos Criminosos
- A falta de pesquisas fez florescer outro mito. O de que as armas que nos ameaçam são importadas e de cano longo. Pesquisa sobre 223.584 armas apreendidas no Rio em situação ilegal entre 1950 e junho de 2001 revelou que 74% delas são brasileiras, 78% são pistolas e revólveres, e 57% foram fabricadas pela Taurus e Rossi (ISER/DFAE, 2003).
Armas Apreendidas por Marca/Fabricante (1950-2001)
As armas estrangeiras e de cano longo contrabandeadas são usadas nos enfrentamentos entre quadrilhas, e entre os bandidos e a polícia. O que nos ameaça nos assaltos são pistolas e revólveres, a grande maioria produzida no Brasil. Por falta de controle, essas armas legais são desviadas para o mercado clandestino.
fontes: DFAE, pesquisa ISER
Impacto da Proibição: Retaliação dos EUA?
- Ao contrário do que tem sido difundido, a indústria brasileira de armas de fogo e munições não gera 40 mil empregos, mas sim 5.643 (IBGE, 2000).
Segundo a própria Taurus, maior fabricante de revólveres e pistolas do país, sua produção se destina em 74% à exportação, 9% as nossas Forças Armadas e polícias, e 17% ao mercado interno civil. A CBC, maior fabricante de munições do país, exporta 34% de seus produtos, vende 37% para as Forças Armadas e polícias brasileiras, e 19% para civis no mercado doméstico (CBC, 2003). A IMBEL, outra grande fábrica de armas, destina sua produção quase que exclusivamente para as Forças Armadas e polícias do Brasil e de outros países. Voltadas para a exportação ou venda para o Estado brasileiro, essas empresas "não vão quebrar", pois terão a maior parcela de seus lucros pouco afetados pela proibição do comércio de armas para civis no país. Teriam a oportunidade de atender à recomendação da ONU, no sentido de converter essa parte da produção para produtos pacíficos.
- A afirmação de que "os EUA poderão retaliar diante da proibição do comércio de armas no Brasil, e deixar de importar armas e munições brasileiras, quebrando essas empresas", omite que:
1 - A Taurus tem fábrica em Miami, onde paga seus impostos e cria empregos.
2 - A lei brasileira (Decreto 3665 de 20.11.2000) já restringe fortemente as importações de armas leves norte-americanas, que em 2002 foram de insignificantes US$6.693 (Secretaria de Comércio Exterior, 2002). Enquanto isso, 30% do mercado de revólveres e pistolas nos EUA são ocupados pela Taurus e Rossi (ATF dos EUA, 2002).
3 - Em 96, atendendo a um pedido do então ministro Nelson Jobim, o governo dos EUA suspenderam a concessão de licença para exportação de armas e munições norte-americanas para o Paraguai por considerar "que estão atravessando a fronteira ilegalmente e abastecendo criminosos no Brasil" (USIS, 23.9.96).
Impacto da Violência na Economia
- O setor privado brasileiro gastou em segurança, com a "indústria do medo", R$ 70 bilhões, quase o dobro dos gastos públicos, que foram de R$ 37 bilhões, em 2001 (Luiz Gomes, CORECON, SP, 2002). Com base em relatório do Banco Interamericano de Desenvolvimento, pesquisa concluiu que a cidade do Rio de Janeiro gasta cerca de 8% do PIB em segurança (ISER, 1999).
"A cada estampido, poucos ganham e muitos perdem"(Senador Renan Calheiros)
- Enquanto o Estado e a sociedade exaurem seus recursos para prevenir e combater os efeitos da violência, a indústria de armas Taurus teve um ganho líquido de R$ 48,05 milhões no ano passado, aumentando em 72,54% seu faturamento em relação a 2001. (Maeli Prado, Folha de S.Paulo, 27.07.03)
Armas Devem Ser Controladas como Carros
- A compra de automóveis exige testes de capacitação e saúde, seguro para terceiros, carteira, vistoria anual e fiscalização; as autoridades controlam o mercado legal e ilegal através de bancos de dados sofisticados. Nesse país, os carros, que são meios de transporte, são mais controlados que as armas, feitas para matar.
"A proibição das armas dará mais segurança aos cidadãos, como ocorreu no Japão, Austrália, Inglaterra e em outras nações"
(Deputado José Roberto Arruda)
Carros Também Matam. Por que não Proibi-los?
- "Se carros, facas, chaves de fenda e outros objetos também podem matar, por que também não proibi-los?", alegam alguns. Carros matam por acidente. Armas de fogo são desenhadas para matar com eficácia, diminuindo o risco de dano ao agressor por matar à distância e sem dar chance à vítima. Elas permitem matar várias pessoas em frações de segundos (Columbine), podendo atingir inocentes com balas perdidas (que causam uma morte a cada 6 dias no Rio, segundo a SSP/RJ, 2003). Comparar armas de fogo com objetos caseiros e automóveis é uma irresponsabilidade.
"Carros são feitos para transportar, armas são feitas para matar"
(Senador Arthur da Távola)
Armas Para Defesa
- A regra nos assaltos é o ataque súbito. O fator surpresa concede ao agressor superioridade esmagadora: quem reage morre, e só não é assim na fantasia do cinema. De nada adianta se a vítima é exímio atirador. Sua arma, se encontrada, via de regra será usada contra ele próprio e seus familiares.
"Sou bom atirador e, mesmo assim, fui ferido em assalto e vi minha mulher ser morta ao meu lado"(Senador Ney Suassuna)
- Pesquisa realizada em SP pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em 2000, concluiu que "os que usam arma de fogo tem 56% vezes mais chances de serem assassinados numa situação de roubo, se comparados com as vítimas sem arma".
- Pesquisa realizada pelo Dr. Arthur Kellermann tornou-se mundialmente famosa ao revelar que "os lares com armas de fogo aumentam o risco de homicídio inter-familiar em 2,7 vezes, os acidentes em 4 vezes e os suicídios em 11 vezes, se comparados com lares sem armas" (New England Journal of Medicine, 93).
- As campanhas pelo desarmamento visam convencer os "homens de bem" que sua arma é mais um risco que uma proteção para si e sua família. Coloca em perigo seu bem mais valioso: suas vidas. Quanto a desarmar os bandidos, essa é uma tarefa da polícia; reformá-la, tornando-a mais eficiente, é tão necessário quanto o desarmamento.
"Fui diretor da Polícia Federal e nunca andei armado"(Senador Romeu Tuma)
Dormindo com o Inimigo
- Em São Paulo, cerca de 50% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis (SSP de SP). Na Zona Sul da capital, em 46% dos homicídios, vítima e autor mantinham uma relação prévia de parentesco, vizinhança, amizade ou conhecimento ( Mingardi, NEV/USP, 1996)
- Nos EUA, 14% das vítimas de arma de fogo foram mortas por familiares, 37,3% por conhecidos, e apenas 15% por estranhos no período 1976/2000 (U.S. Department of Justice, 2002). Na Austrália, apenas 15,6% dos homicídios foram cometidos por desconhecidos no período 2001-2002 (Australian Institute of Criminology, 2003). Em Mendoza, Argentina, apenas 10% dos assassinos eram desconhecidos de suas vítimas (Governo da Província de Mendoza, 2003).
- Nem toda violência é planejada por estranhos. Boa parte das mortes por arma de fogo é ocasionada por conflitos passionais; brigas de família, de vizinhos, de trânsito ou de bar, vendo-se futebol na TV; acidentes; suicídios e estupros; roubos por seguranças privados e empregados, etc.
- É difícil admitir que o inimigo pode estar próximo. Desentendimentos normais, se uma arma está à mão, têm um desfecho trágico e mortal. A presença da arma muda a natureza do conflito, tornando-o letal. Quem tem arma está dormindo com o inimigo.
- Quando as estatísticas demonstram que uma arma é mais um risco que uma proteção, o alegado direito à auto-defesa para se ter uma arma viola o direito da família à segurança. Em alguns países, o cônjuge tem que consentir a compra da arma.
"200 mil pessoas estão morrendo a cada ano no mundo em assassinatos, suicídios e acidentes com armas de fogo"(Small Arms Survey, Genebra, 2002)
Mais Armas = Mais Violência
- A arma por si só não causa a violência. Por exemplo, se o Rio Grande do Sul tem menores índices de criminalidade do que o Rio e SP, é porque nesses últimos a proliferação de armas se combina com uma situação mais grave de narcotráfico, pobreza, crise urbana e outros fatores.
- Mas como é alto o índice de porte e posse de armas no Rio Grande do Sul, a taxa de acidentes e suicídios também é enorme.O Rio Grande do Sul detém o triste recorde de primeiro lugar em suicídios do país (10 por 100.000 habitantes), e é o segundo Estado em suicídios por arma de fogo (29,6%) (Datasus, 2000). Esses números só confirmam a pesquisa do Dr. David Hemenway, segundo a qual "onde tem mais armas de fogo, tem mais suicídios" (Harvard University, 2002).
Impacto na Saúde
- Em Brasília, 30% dos atendimentos nas emergências hospitalares são relativos a ocorrências com armas de fogo. Enquanto uma bala custa menos que R$ 1, a internação hospitalar para uma vítima de arma de fogo custa em média R$ 245,70 por dia (Convive, DF, 2003). Nos EUA, prefeituras e vítimas começam a processar indústrias de armas pelos gastos e danos causados por seus produtos: 12 cidades da Califórnia estão processando vários fabricantes de armas, inclusive a Taurus (New York Times, 30.9.02).
"Os que se armam são os primeiros a morrer"(Senador Marcelo Crivella)
- No município do Rio, as armas de fogo são a primeira causa de morte de jovens do sexo masculino (65% das mortes), superando os acidentes de carro, as doenças e as causas naturais. (Datasus, Pesquisa ISER):
CE: Causas Externas; CE PAF: Causas Externas por Arma de Fogo; Ac Trans: Acidente de Trânsito
Mercado Clandestino
- Se a proibição do comércio se efetivar, o preço das armas no mercado ilegal deverá subir, dificultando sua venda para os delinqüentes.
"A paz urbana depende do banimento das armas de fogo"
(Deputado Fernando Gabeira)
Fontes que Abastecem de Armas o Crime
- Ao contrário das drogas, cujo circuito é totalmente clandestino, as armas e munições, produtos industriais, são legalmente fabricadas. Toda arma envolvida em crime, um dia foi legal. O fluxo do comércio legal para o ilegal se dá através de:
1 - Exportadoras de fachada que, ao intermediar a transação comercial ("brokers"), desviam para o mercado clandestino no Brasil armas e municões que deveriam ser exportadas.
2 - Desvios no transporte entre produtores e compradores, que não é fiscalizado.
3 - Boa parte das armas apreendidas foram parar nas mãos de criminosos a partir de sua venda original para "cidadãos de bem".
4 - Desvio das armas legalmente vendidas a empresas de segurança privada (13.101 armas desviadas no Rio, segundo apurou a CCI da Assembléia Legislativa, 1999)
5 - Contrabando nas fronteiras com o Paraguai (pistolas, revólveres e munição), Argentina (armas e granadas militares), Uruguai (venda ostensiva nas cidades limítrofes), Suriname (armas de cano longo e automáticas) e Colômbia (troca de armas por drogas).
6 - Armas de uso proibido ou restrito desviadas dos estoques dos quartéis militares ou policiais (3.200 armas de uso militar ou restrito apreendidas no Rio entre 1999 e 2002).
7 - Falsos colecionadores e atiradores esportivos, que utilizam essa condição para comprar armas de uso restrito ou proibido e revendê-las no mercado clandestino.
Rio de Janeiro, setembro de 2003
Websites: www.desarme.org; www.vivario.org.br
E-mail: controlearmas@vivario.com.br